sexta-feira, novembro 9

A Menina do Trem

(sobre o amor, platônico e belo)
Não procure saber quando foi, a que horas, sou incapaz de recordar esses mínimos detalhes, mesmo porque não os faço dignos de muita atenção. Do que eu lembro, lembro muito bem. Que atire a primeira pedra o cristão que nunca tenha passado por isso, pelo simples prazer de se apaixonar do nada, por alguém de biografia desconhecida, se apaixonar, bem como diziam os grandes romancistas, referindo-se ao amor à primeira vista.

Lembro que a noite começava a cair, e o meu destino era certo, ao entrar no trem, tinha, assim como todos que ali estavam, a certeza de estar indo para algum lugar. Mas, fui surpreendido por uma agradável visão etérea, dimensionada ali, na minha frente. Seus olhos logo alcançaram os meus. Foi assim, como posso dizer, como uma “pancada” de rosas na cabeça? Quem sabe.

Sua pele lisa, delicada, seu cabelo negro, comprido, era preso na altura dos ombros, revelando certo descuido para com o mesmo. Vestia uma calça justa, uma camiseta convencional também justa, branca, e usava um par de chinelos, azuis, se me recordo bem. Sua boca continha carne, suficiente para satisfazer minha fome de beijar aqueles lábios molhados. Fitei-a sem a menor compostura, sem o menor pudor, durante todo o trajeto. Como dissera, nossos olhos se cruzavam a cada instante, trocando informações não captadas por terceiros, que mal podiam perceber a harmonia daquele momento. A cada estação, um aperto. E ela não descia, muito menos eu. Eu a enxergava como uma sereia, sem qualquer relação com esses clichês básicos das frases de caminhoneiros, tratava de pensar em como ela fizera-me desviar do meu destino, assim, como as sereias fazem, cantando e atraindo seja quem for para próximo, desviando os mesmos de qualquer ponto final já antes traçado. Seu canto era inaudível, mas vibrante, capaz de ser absorvido apenas pelos ouvidos do coração, que sentem o bater de um outro coração que a ele esteja interligado.

Fomos que fomos e ao longe chegamos. Sorrateiros, não sabíamos quem estava a pregar a peça da ilusão, da verdade de em breve descer e nunca mais voltar a nos ver. Infelizmente, fora ela, desceu e eu nem percebi, como um castigo por tamanha devoção, a perdi assim, de repente. Saí do vagão, a procurei por alguns instantes, mas de nada minha busca adiantou, milhares de outras pessoas na minha frente, cabeças, cabelos, altas e baixas, em ritmo lento ou devagar. Admito ter tentado uma última “aproximação”, já que durante o percurso não aproveitei minhas “oportunidades”, mas, de nada adiantou. Diversas estações depois, esforço em vão.

As portas fecharam, evidenciando de forma conclusiva ser o fim de algo que não havia começado, mas que para mim, já havia, por mais que seja fantasia, durado de certa forma, uma eternidade. Meu peito chorava, lamentando a perda do que antes iluminara meu dia, a perda daquilo que naqueles minutos fora sagrado. Perdi meu destino, minha estação, perdi meu dia, minha divina, porém, muito mais do que isso, muito além de meros detalhes, perdi, por final, alguém que quisera junto a mim, aquele alguém, perdi a menina do trem.