quarta-feira, outubro 17

Enfim!

(primeira e - tomara - última autobiografia)
Ele era um cara que se julgava perfeito, cínico como de costume, se olhava no espelho sempre à mesma hora, assim como tomava seu chá e degustava bons livros na compania de sua imensa solidão. Ouvia boas músicas, seu bom gosto era algo louvável, plausível até demais, conhecia cada acorde como se a música tivesse sido construída por ele mesmo. Tomava dois banhos por dia, um para "lavar a alma", como ele dizia, e outro pra satisfazer sua higiene. Era limpo, ostentava uma barbicha teimosa, não fazia o cavanhaque e seu bigode era ralo, quase imperceptível. Não costumava ligar para seu vestuário, hora requintado, outrora nem tanto. Comia sempre sentado à mesa, detestava a falta de costumes de terceiros que, ao contrário dele, não prezam tanto por sua refeição. Em seu guarda-roupa, guardava uma caixinha contendo escritos oriundos de diversas mãos, muitos lhe haviam escrito cartas, recados, mensagens, e ele, com muita consideração, fazia questão de guardar tudo com muito apreço em uma de suas gavetas de roupas íntimas, onde dificilmente alguem procuraria. Num dos cantos do seu quarto, seu refúgio particular, um móvel bastante antigo suportava o peso de uma pilha de livros antigos, seus melhores amigos, e nas gavetas, papéis rabiscados, poesias nunca terminadas, jogadas ao descaso do passado. Não se considerava um gênio, mas sabia que a sua facilidade para escrever lhe rendera diversos elogios durante sua - nunca citada dessa forma - carreira. Outra pilha, de discos, enfeitava sua mesa, disposta exatamente no canto contrário ao móvel velho. Estilos dos mais variados lhe faziam passar horas dedilhando um violão imaginário, já que o seu, antes apreciado por longas horas, já não fazia mais parte de seu tempo livre. Tinha quadros na parede, retratos de uma população à margem, que brilhavam ao raiar do dia, quando o sol finalmente adentrava por entre as portas. Não possuía janelas em seu esconderijo, e isso sinceramente lhe fazia muito bem. Uma dessas portas, que na verdade não são portas, são janelas-portas, quando aberta, enchia o aposento de um amarelo intenso, reluzindo a cor do Ipê-amarelo, que lhe causava lágrimas de felicidade a cada desabrochar de flor.
Tinha muitos amigos, alguns melhores amigos, alguns irmãos, duas, de sangue, e uma infinidade de conhecidos. Viajado, conhecera diversos corações, mas não sei dizer ao certo se um dia fora capaz de se apaixonar de verdade. Era apaixonado pela vida, amava cada verde de matas, cada bicho que lhe cruzava o caminho, em especial, adorava cães, pois se identificava com o estilo de vida deles, calmos, turbulentos, amáveis, detestáveis, dependentes de carinho e um pouco de atenção, embora quase sempre solitários, o que mais lhe aproximava, ao contrário do que geralmente se pensa, fora ele o melhor amigo de todos os cães que por sua vida passaram. Sua família o fez um homem cheio de atributos, qualidades e defeitos. Nunca fora adepto de Narciso, e sabia reconhecer suas falhas. Muitas delas durante sua adolescência. Mentiras, alucinações, causando a dor, que machucava à si próprio sempre que pensava em desistir de seus vícios, sua inconsequência quase dera fim à sua eterna fantasia de ser maior do que sempre pensara. Imaturidade, irresponsabilidade, era um garoto, e imagino que ainda seja, pouco se cresce da noite pro dia. Dias quentes e noites frias, noites onde procurou descobrir coisas demais, fazendo com que sua cabeça rodopiasse em diversos instantes. Não bebia sozinho, precisava que lhe fizessem compania para degustar o álcool que lhe resgava a garganta. Fumava, demais, algumas vezes chegara a pensar que fosse se transformar num cigarro, desses convencionais, que ao dormir e se enrolar ao lençol branco de tecido velho, suas pernas entrelaçariam seu travesseiro como uma espécie de filtro, para degustação de um gigante, que por diversas vezes atormentara seu sono, num pesadêlo nunca muito bem entendido.
Em um desses dias considerados normais, onde pessoas normais acordam cedo para ir ao encontro de seu trabalho comum, de salários mal pagos e filas infindáveis à espera de um milagre, passou cedo na banca de jornal e apanhou seu Marlboro, como de costume, deu dois e trinta para a passagem do trem e partiu. Já noite, voltou para sua casa, seu refúgio, e se pôs à caneta e papel, repetindo a rotina de todas as noites, onde linhas chatas e palavras rabiscadas lhe proporciavam prazer a cada frase. Mas não escreveu poesias ou sonetos, desta vez escreveu sobre si próprio, como numa espécie de auto biografia, e feliz, sorriu ao termina-lá dando o nome de "Enfim!"