sexta-feira, janeiro 11

Deslumbre

(A se perder de vista ao despertar)
O calor era infernal. Ainda sinto escorrer pelo meu corpo a conseqüência daqueles dias de sol, onde o mar, por mais azul e refrescante que aparentasse, não refrescava, se mostrava tão quente quanto a brisa que ali soprava. As sentinelas dos ventos pairavam sobre a minha figura, abandonada em meio à imensidão desértica de areias intermináveis daquela praia, a minha praia. Pareciam aguardar ansiosamente pela minha morte, para que assim pudessem saciar sua fome, de carne humana, humanamente desgraçada, que vagava solitária por entre coqueiros e arrebentações. Perdido e cansado, por muito caminhei, sem saber detalhe algum sobre meu provável destino. Alguns dias foram a própria morte, como se simplesmente estivesse sendo levado, soprado por algum vento mais forte que eu, exatamente assim, sem reação, um corpo deslizando por entre os ventos quentes do inferno. Outros foram redentores, os braços abertos dos anjos vinham até mim, trazendo asas e alguns suspiros tolos, para que assim pudesse voar em torno deles e dançar ante o crepúsculo. Por dias dancei e com o vento fui e voltei, soprei longe daqui e retornei, soprei aqui novamente e então me recostei junto à beira mar, para que pudesse aos anjos dar algum descanso. E como bons anjos, abandonaram-me sem que eu pudesse dar conta, não que não os notasse partindo, notei, sim, mas fiz que não os vi. Por longas noites então, tive a companhia de alguém tão importante quanto meus amiguinhos dançarinos, um ser único e capaz de facilmente substiuí-los. Fui surpreendido pelo Diabo, e sua doce voz de veludo. Contou-me boas histórias e fez-me rir durante longos segundos de excitação e alegria. Traguei de seu fumo e bebi de sua água. Cantei como nunca, e corri por grandes distâncias, dormi pouco, logo fui tomado pelo desgaste, físico e mental. Mas não me importava, estava em boa companhia, estava na presença de alguém que me queria bem, alguém que não me fazia dançar corretamente, a cada nota, seguindoà risca o maldito compasso. Podia dançar como bem queria, meu novo companheiro em tudo me apoiava, não me recordo de ter sido advertido uma vez sequer. Entretanto, num desses dias, percebi então não mais me reconhecer, meu cabelo estava sujo e comprido, uma barba, antes tímida, agora dominava meu semblante, outrora doce e bem cuidado. Meu corpo definhara, ainda dançava bem, suportava longas corridas e minhas fugas aos céus em vôo, mas era nítido, definhara, assim como minha face. E ao encontrar meu grande amigo, neste mesmo dia, dei de cara com a minha própria face, era como se tivéssemos trocado de rosto da noite para o dia. O Diabo era exatamente como eu, cada traço, cada detalhe, cada ruga, era perfeitamente eu. Assustado, corri para longe e alcei vôo para o alto, para cada vez mais alto, na expectativa de encontrar meus amigos, os anjos. Eles, que sem o menor considerar, abandonados por mim foram, sem hesitar, abraçaram-me com força e demonstraram todo o afeto que a eles deixei de depositar. E por três longas tardes dancei junto a eles até que o sol se deitasse atrás das montanhas. Ao voltar para meu banco de pedras e areia, logo senti o calor, que me fazia suar como um porco. Ao longe, pude ver meu amigo Diabo caminhando, em passos firmes, vindo rapidamente em minha direção. Estava furioso, seu rosto voltara ao normal, estava coberto de cicatrizes, de pêlos e sua pele estava seca, maltratada e desidratada, queimada pelo fogo que arde nas trevas do inferno. Passei minhas mãos ao redor do meu rosto e pude notar cada milímetro meu no seu devido lugar. Tinha recuperado minha face novamente, e isso o atormentava a cada sorriso de surpresa que eu demonstrava ao reconhecer finalmente minha própria pele, minhas formas, meus defeitos, que só a mim faziam questão de se mostrar existentes. Ao perceber então seus olhos a me desaprovar, sutilmente o convidei para comigo novamente dançar. Ofereceu-me novamente seu fumo e sua água, que desta vez, a mim não convenceram. E para cada vez mais alto seguimos. E dançávamos mais e mais, rodopiávamos em torno dos ventos, que sopravam cada vez mais forte e distante. Já havia perdido de vista minha praia, meu pequeno inferno paradisíaco, meu recanto. E desta forma, dançando sem pensar, flutuando na presença da existência e de toda essência, perdi de vista meu amigo Diabo e fui então contemplado com a presença de estrelas, miúdas e tímidas, que a mim vieram se apresentar. Constelações se reuniram para me saudar, e cantaram suas cantigas noturnas. Gostaria de estar com meus amigos anjos ali, mas estava só, eu e minhas novas companheiras, as estrelas. Cantaram-me durante dias e dias e anos e décadas e muito e muito tempo. E a cada século de canto, a cada milênio de dança, na então Terra, ali, no infinito, duravam apenas alguns segundos, e milésimos, era tudo muito rápido. Ao voltar para minha praia, sozinho, caminhando por entre coqueiros e arrebentações, notei estar novamente sendo seguido pelas sentinelas, que ainda davam voltas por sobre mim, apreciando de longe minha carne, humanamente tola e sábia, humanamente mentirosa e sincera, humanamente culpada e perdoada, humanamente viva e caminhante. E caminhando, segui, até simplesmente despertar, num lugar estranho, que não me recordava, dentre quatro paredes, em meio à madrugada. Coberto por lençóis, sobre um colchão macio, dali avistei de longe minhas amigas, as últimas que fiz em minha longa vida de amizades, as brilhantes e devotas estrelas. Corri e tentei voar para alcançá-las, mas não consegui, mal saí do chão, e sobre pedras e folhas secas caí. Pensei como poderia ser possível, se antes para mim era tão fácil voar até onde não mais se podia imaginar, e agora, nem do chão conseguia sair, logo depois de ter acordado naquele quarto. E segui comigo confabulando, durante horas, questionando ao céu e me questionando, cheio de preces, esperanças, para que todas aquelas fugas, aquelas danças, não passassem de um devaneio medonho, infernal e angelical, quiçá, apenas um sonho.