domingo, agosto 10

Dia Frio

(um relato conclusivo)
A sensação térmica era das piores. Não sentia tanto frio há algum tempo e estava prestes a sair da estação mais próxima do metrô, há alguns quarteirões de sua casa. Enquanto subia, pensou seriamente no filme que acabara de assistir, numa sala de cinema tão velha quanto sua antiga moradia, quase centenária. Buscou no fundo do bolso seu isqueiro, o cigarro já estava em sua boca, e brigando com o vento, após algumas tentativas, conseguiu acendê-lo e dar sua tão esperada tragada. Conforme andava, pela avenida movimentada, sentia cada vez mais as gotas de chuva lhe cortando a pele. Como disse, a sensação térmica era terrível, seu corpo esfriava mais e mais, a cada passo. A noite de tal forma, já havia sido prevista, e ele sabia, pois pudera assistir ao noticiário na noite anterior. Mas como sempre, não levou casaco, muito menos seu guarda-chuva, e estava então completamente à mercê do tempo e seu clima pouco amistoso. Chegou em casa. Na parede, o relógio apontava onze horas, mas sabia que era mais cedo. Costumava sempre adiantar os ponteiros, para que o atraso não determinasse sua conduta. Não gostava de levantar cedo, não conseguia, e por isso ostentava uma dependência febril pelo estridente som de seu despertador. E pensava nisso, enquanto entrava. Procurou um cinzeiro na cozinha, não encontrou, olhou orgulhoso para sua bituca, que resistira heroicamente à força da chuva, ao frio e ao vento, não necessariamente em dada ordem, mas, enfim, a apagou de qualquer jeito numa das quinas da pia e se sentou. Mal podia acreditar na quantidade de louça acumulada. Comia quase sempre sozinho, às vezes, tinha companhia de desconhecidos, sempre a perambular do lado de fora de sua janela. Olhou novamente para toda a sujeira, sabia que deveria pôr-se a lavá-las, mas não, não o fez. Levantou, rodeou a mesa, olhou para sua própria desordem e resolver comer. Botou o feijão para esquentar, mas não na pressão, não queria esperar para saciar sua fome, simplesmente adicionou um pouco de água à uma panela rasa e a ligou em fogo alto. Outro cigarro se acomodou em seus lábios, e lhe fez companhia enquanto aguardava. Pegou seu prato, seu cigarro ainda na boca, e apagou as luzes. O interruptor era muito mal localizado, ficava atrás do filtro de água, escondido, e necessitava de certos malabarismos para ser desligado. De muitos mais para ser ligado, logo que à plena luz a dificuldade já era imensa, quando em breu, era tarefa árdua. Nenhuma lâmpada acesa, somente enxergara os primeiros degraus, que o levariam até seu quarto, graças à luminosidade que atravessava o vidro de sua porta de entrada, oriunda de um desses postes de rua. Subia devagar, com toda a perícia que lhe cabia, mas fora traído por um balde de água, que inocentemente atravessara seu caminho. Como dissera no início, era noite, chovia torrencialmente, e o balde, permanecera intacto até aquele momento, desempenhando sua função dentro da casa. Como em qualquer casa, dessas mais antigas, havia algumas goteiras, que teimavam em molhar o também antigo taco, o piso, de madeira, descascado e deteriorado pelo tempo. O prato ainda estava em sua mão, o cigarro, ainda queimava em sua boca, mas seus sapatos estavam encharcados. Parou e fechou os olhos, não deu muita importância, continuou a subida e adentrou seu quarto, seu paraíso particular. Naquele espaço, bastante acolhedor, passava a maioria do tempo, e por mais que as janelas ficassem quase sempre abertas, não sentia frio, como que se a simples consciência de estar ali pudesse enganar sua sensibilidade. Mas a verdade era outra, encontrava naquele quarto um abrigo para toda a sua incapacidade. Sabia que as horas desperdiçadas em frente ao computador e todos os momentos em que ficara observando o tempo passar, jamais, jamais voltariam. Seus vinte e um anos chegaram muito rápido. E tendo isso em mente, iniciou sua refeição e optou por deixar os sapatos molhados no pé, depois tomaria um banho e resolveria tal situação. Sua fome encolheu, assim como sua vontade de estar limpo. Desistiu do banho imediato e se deixou deitar na cama. Havia papel, havia caneta, havia frio e havia tormento. Enfim, todo o necessário para se pôr em prática seu gosto pela escrita. Não encontrava, porém, qualquer motivo, qualquer idéia, que pudesse iniciar seu pensamento. E depois de muito procurar, em sua vasta gama de possibilidades, de forma súbita e decidida, rabiscou no papel, sua primeira frase, aquela que serviria como base para sua tese, algo relacionado a um jovem, enclausurado em tempo e espaço, atormentado por suas próprias escolhas e arrependido pelas oportunidades abandonadas. E a frase era “A sensação térmica era das piores”, acendeu sua luminária e começou a escrever...